Presto contas, mais uma vez, de minhas atividades como Presidente da Representação Brasileira no Parlamento do Mercosul, em missões no exterior. Retorno agora de Cádiz, Espanha, onde participei de mais uma assembleia parlamentar da Eurolat, que reúne Parlamentos Latino-americanos e o Parlamento Europeu.
Lá, como no “Foro de Guadalajara”, no México, assim como nas sessões do Parlamento Andino, em Lima, Perú, dominou o mesmo tema: a crise financeira global.
Se, em Guadalajara, com poucas discrepâncias, concluímos que o neoliberalismo não tem nada a contribuir para a libertação dos povos das desgraças que ele próprio engendrou, em Lima, ouvimos, estarrecidos, o presidente da Suprema Corte do país dizer que uma das tarefas fundamentais do Judiciário é a de garantir o “livre mercado” contra toda veleidade de regulamentá-lo.
Parece que as nossas Supremas Cortes enfiam-se por ínvias sendas.
Na Europa, foi possível o contato direto com os estragos –e a reação popular a eles- causados pela política de austeridade fiscal imposta a Portugal, Espanha, Itália e, principalmente, à Grécia pelo FMI, Comissão Européia e Banco Central Europeu – a tão amaldiçoada troika. De forma clara, sem qualquer véu, a conta da quebra dos bancos, com a débâcle financeira de 2008, está sendo repassada aos trabalhadores e à classe média, na forma de arrocho salarial, desemprego, cortes nos gastos de saúde, educação, previdência, habitação, aumento da jornada de trabalho sem compensação salarial. E mais.
O desemprego na Espanha ultrapassa os 25 por cento; mais de 400 mil famílias já perderam suas casas, retomadas pelos bancos, provocando uma onda de suicídios. E, até o final do ano, projeta-se, mais de 180 mil famílias serão expulsas de suas residências.
E leio nos jornais brasileiros que a Câmara Portuguesa de Comércio e Indústria do Rio de Janeiro promove, naquela cidade, entre os dias seis e nove de dezembro, uma grande feira de oferta de imóveis, colocando à venda milhares de casas e apartamentos, tentando atrair os ricos brasileiros, porque os pobres portugueses não têm como comprar ou pagar suas casas.
Segundo o Banco de Portugal, o Banco Central deles, mais de 37 por cento das famílias lusitanas têm algum tipo de dívida; 25 por cento dos domicílios têm dívida hipotecária, de difícil resgate.
Sob a regência da senhora Merkel, uma dama de ferro tardia, uma chanceler de ferro deslocada no tempo, a troika assume os interesses das classes dominantes, releva as estripulias do mercado financeiro, cobre os rombos dos bancos, premia a especulação, por mais destinada que tenha sido.
Enquanto os inventores do subprime, enquanto os bancos, seguradoras e especuladores são resgatados e salvos sem arranhões, suas vítimas são punidas.
Enfim, nada mais do que o triunfo, a prevalência da ordem natural das coisas sob o capitalismo.
Foi o que vi, na Europa.
Vi mais. Vi no México e no Perú, vi nos debates na assembléia da Eurolat que isoladamente, que sozinhos, por nossa conta e risco, não vamos longe e permaneceremos presos à terrível ditadura do capitalismo financeiro internacional.
Paulo, o apóstolo, a quem talvez se deva a afirmação do cristianismo, sustentava que fora da igreja não havia salvação. Da mesma forma, é possível assegurar que fora da unidade –e da simbiose– latino-americana não há salvação.
Não há redenção para os nossos povos. Não há futuro para os nossos países. Não há clemência para os nossos seculares sonhos de independência, desenvolvimento e bem-estar, fora da unidade latino-americana.
O axioma é tão antigo e os pressupostos tão incontestáveis que reafirmá-los pode soar óbvio, pedante ou até mesmo tedioso.
A indispensabilidade da União Latino-americana é uma dessas verdades que de tanto serem reafirmadas parecem embotar os nossos sentidos, tornando-os insensíveis a elas. Mas são verdades que a cada passo de nossa história, especialmente em conjunturas de crise econômica –como agora- explodem à nossa frente.
O que nos impede de despertar?
O ditado “O uso do cachimbo faz a boca torta”, aplica-se aqui à perfeição. O nosso cérebro e a nossa alma, toda hora alvejados por uma mídia servil aos interesses imperiais e sempre pronta a revalidar a nossa inferioridade, entortam e distorcem a nossa percepção, deformam a nossa vontade, e moldam o nosso conformismo.
Todo sentimento de latinoamericanidade é tratado com deboche, como manifestação atrasada, jurássica. Moderno, avançado, proclamam os nossos liberais de fancaria e seus meios de comunicação, moderno e avançado é resignar-se ao papel de produtores de commodities e consumidores de produtos importados. Moderno é ser dependente.
Modernos são os acordos bilaterais, amarrando o mais fraco ao mais forte. Atrasado é formar blocos, buscando o perfeito equilíbrio entre os interesses de cada país. Moderno, como queriam Menem, Fernando Henrique Cardoso, Fujimori, e Salinas de Gortari, é a Alca, é a recolonização da América Latina.
Ao discursar na abertura da 67ª Assembleia Geral da ONU, a presidente do Brasil, Dilma Roussef, fez duras referências à política econômica dos países centrais. Criticou a guerra cambial; deplorou a opção por políticas fiscais ortodoxas que aumenta a recessão, esmaga os trabalhadores e prejudica ainda mais os países em desenvolvimento;
defendeu as iniciativas de defesa comercial dos países emergentes, repelindo a classificação de “protecionistas”.
Enfim, posições que cada um de nós, mesmo os mais críticos à presidente, assinaria. Mas não a imprensa brasileira, mas não as elites brasileiras.
Os principais veículos de comunicação de nosso país abriram espaços a críticas amargas ao discurso da presidente, posicionando-se em defesa do Fed, da troika, do FMI. Como obervou o economista José Carlos de Assis: o entreguismo parece coisa antiga, mas está vivo.
Logo, se é verdade que fora da unidade latino-americana não há salvação, da mesma forma é verdade cristalina que sob as classes dominantes de nossos países não há saída para o atraso, para se desatar as amarras que nos prendem à dependência, à condição de mendicantes. As elites de nossos países, com os seus instrumentos de dominação, como a mídia, setores das igrejas, o ensino, a academia, o sistema político-eleitoral, o judiciário são inimigas de toda mudança, de qualquer reforma, por inofensiva que seja.
Como se vê, a primeira barreira à unidade latino-americana está em nossos próprios países.
Mesmo em países que governos tendem à esquerda, persiste, resiste uma burguesia tacanha, retrógada, culturalmente limitada, sempre de plantão para apoiar golpes de Estado ou então conspirando no judiciário, no legislativo, na imprensa para que tudo permaneça como está. Quando se movimenta é para se antecipar à possibilidade de mudanças, segundo o preceito lampedusiano.
Assim, quando vejo elogios à “consolidação da democracia nos países latino- americanos” instintivamente me ponho alerta.
O que se vê, na verdade, é consolidação do status quo, com alguma tintura de boas maneiras, de civilidade, coisa para liberal norte-americano ou europeu se enganar.
O termômetro máximo de nosso estágio democrático, ou quem sabe civilizatório, para esses observadores da evolução de nossas habilidades com talheres e louças, para esses observadores do exótico, são as eleições; se elas forem, segundo o critérios deles, suficientemente “higiênicas”, eles concedem-nos o nihil obstat para que possamos ser admitidos no maravilhoso mundo da democracia ocidental. Oh, gloria!
Antigamente, abalavam-se para esses trópicos para observar pássaros.
Hoje, para observar eleições. Com o mesmo espírito de busca pelo inusitado.
Por isso, senhoras e senhores senadores, confesso que às vezes -ultimamente muitas vezes—impacienta-me o arrastar do tempo, as delongas desse tempo latino-americano.
Esse encantamento de Macondo que nos imobiliza, enfeitiça. Parece que nada anda, que a modorra tropical, como uma doença do sono, deixa-nos letárgicos, apáticos, resignados.
Mesmo quando nos agitamos, sacudimos a pasmaceira, o fazemos dentro da moldura institucional, respeitando os limites do quadrado aonde querem que nos condicionemos e nos movimentamos. A quadratura do quadrado tem sido o nosso espaço. Quer dizer, pensamos, raciocinamos, projetamos e propomos dentro das instituições.
Discutimos a crise, examinamos suas raízes e apontamos as saídas dentro das instituições, da chamada “normalidade democrática”, de respeito “aos contratos e às regras do jogo”.
Mesmo as nossas palavras mais duras, mais incandescentes transformam-se em belas palavras diante do muro das instituições, das pedras da lei.
Mas que são as instituições que governam cada um de nossos países?
Cui prodest?
Cui bono?
A quem elas interessam?
A quem elas beneficiam?
Certamente não à maioria de nossos povos.
Logo, não são democráticas.
Não aos interesses nacionais.
Logo, não servem aos nossos países.
Não ao progresso da civilização, à libertação do homem da exploração e da miséria.
Logo, não são humanitárias.
Singelamente o que eu quero dizer, singelamente quero dizer que se esgotou o tempo das belas palavras, das belas intenções. Esgotou-se o tempo da convivência com esse modelo institucional.
Fomos derrotados, claramente derrotados em nossas pretensões de rompimento, de mudança radical do sistema, nas décadas de 50, 60 e 70. Perdemos.
Não interessa examinar aqui por que, mas perdemos. Ou atordoados pela derrota ou cansados da Revolução ou fascinados pela possibilidade de ascensão ao parlamento, ao governo —nunca ao poder, ressalve-se— reinventamos, latinoamericanamente, o Pacto de Moncloa, embora, na substância, registre-se a mesma capitulação.
Será que não basta? Será que já não deu para o gasto? O que avançamos nessas três últimas décadas na Latino América sob a égide da tal democracia e sob governo ditos ou tidos como de esquerda, populares?
Sei, sei.
Argumenta-se que diminuímos a desigualdade, reduzimos a mortalidade materno-infantil, tornamos menor o número de analfabetos, distribuímos alguma espécie de renda, trouxemos dezenas de milhões de deserdados ao maravilhoso mundo do consumo de três refeições diárias.
E isso e mais aquilo.
Parabéns! Muito bom!
Mas desde quando iluminar, com uma luz ainda débil, os cantos escuros dessa miséria tão antiga significa o descortino, a aurora de um outro tempo?
Se contentamos com pouco, se agimos como as madames dos chás de caridade , se nos equiparamos aos jogadores de futebol e às celebridades televisivas, que sobem os morros ou descem às palafitas para fazer “trabalhos sociais”, tudo bem, que estejam servidos.
Acredito, no entanto, que a nossa ambição seja maior. Não é possível que aceitemos que a melhoria de vida das camadas mais pobres seja vista como uma revolução. O acréscimo de uma refeição a mais no cardápio dos pobres, e, de vez em quando, o luxo de um pedaço de carne, além de televisão, geladeira, móveis e quem sabe até um carro não mudam a substância das coisas.
E nada garante que tais “conquistas” persistam ou que suportem um pequeno sopro, uma marolinha que a crise provoque.
Reconheçamos: nada mudou. Se a natureza das coisas não mudou, se a substância é a mesma, que temos a festejar?
Da mesma forma que é verdade que a vida dos mais pobres melhorou um tanto —-não vou aqui falar sobre essa besteira de “nova classe média” para poupá-los de tanta sandice– é mais verdade ainda que a política econômica não mudou!
As nossas elites, os nossos chamados capitães da indústria, os grandes comerciantes e o agronegócio não se opõem à certa intervenção estatal na economia mas querem que a produção e o desenvolvimento capitalista se deem sob o controle deles.
Querem a participação do Estado porque o Estado é o maior gerador de capital disponível.
E esse Estado, o maior gerador de capital disponível , mesmo quando sob governos de esquerda e à esquerda, contribui para a perpetuação das desigualdades, para a exacerbação da concentração de rendas.
Insisto: alvíssaras! Saudemos, louvemos e agradeçamos os beneméritos que acrescentaram uma refeição a mais à mesa dos mais pobres. Mas isso não é revolução!
Se as concepções e os interesses de classe que guiam a política econômica continuam os mesmos, irrepreensivelmente os mesmos, o que mudou?
Alguns afagos nos pobres depois de cinco séculos de apartheid social, e depois de século e meio do fim da escravatura, são mudanças?
A redemocratização de nossos países, na sequência da remoção das ditaduras militares e civis –porque já imprestáveis, demasiadamente onerosas para o império e seus aliados nacionais– o fim delas, não mexeu uma única vírgula no caráter de classe de nossa sociedade.
Examinemos as nossas constituições.
As nossas constituições, ditas democráticas, ditas cidadãs, ditas libertadoras, não tocam em nada que possa colocar em xeque o caráter de classe de nossa sociedade.
Longe de eu pretender constituições socialistas. Não é isso.
Quero dizer que as nossas leis sacralizam e pretendem petrificar a idéia de uma sociedade com dominantes e dominados, detentores dos meios de produção e vendedores da força de trabalho. Assim sendo, como então imaginar uma política econômica que contradite tais preceitos?
Diariamente, aqui no Senado da República do Brasil, nas comissões e no plenário desta Casa, assim como na Câmara dos Deputados, aprovam-se emendas à Constituição. Diariamente.
No entanto, nenhuma emenda –uma mísera que fosse—arranha prerrogativas dos dominantes, faz cócegas no sistema bancário, cutuca os graníticos pilares em que se funda a República brasileira.
O jurista Fábio Comparato, fazendo uma exegese de nossas leis e examinando a realidade das coisas em nosso país, conclui: “No Brasil, o povo não tem poder algum. Faz parte da encenação. Faz parte do conjunto teatral, mas não faz parte propriamente do elenco”.
De fato. As leis, as nossas leis, não foram feitas para consagrar a plenitude da justiça e sim para garantir privilégios ou, quando muito, para remendar, mitigar situações, a fim de que tudo continue com o sempre foi.
Remendos- observe-se- que demoram séculos para serem cerzidos. E não falo nos 300 anos da escravatura dos negros, legalizada em nossas Cartas.
Mas não vim aqui propor reformas constitucionais. Não quero remendar o que parece irreparável.
Ruptura.
Esta é a palavra, esta é a ideia que gostaria de introduzir em nossas discussões. Da mesa forma que sem unidade não há salvação para a América Latina, sem ruptura não saída para a crise com a qual o capitalismo nos contamina.
Na verdade, o que eu queria dizer mesmo é que sem revolução não há salvação.
Parênteses.
Quando falo em revolução, não estou concitando ao levante, a pegar em armas. Os conservadores, pródigos em mistificações, buscam sempre associar a proposta de revolução à luta armada, à violência, estigmatizando a idéia de transformação, de mudança estrutural da sociedade. Não só a direita, mas também certa esquerda dogmática, tão aferrada ao pé da letra quanto os criacionistas.
Experiências aqui mesmo na América Latina, experiências na Europa exemplificam que é possível atingir um grau avançado de ruptura, lançando-se assim bases para a construção de uma nova sociedade, que tenha como medida, princípio, meio e fim os interesses nacionais e populares.
Utopia?
Sonhar é melhor que o inútil, estéril e esgotante trabalho de deitar remendos em um tecido que já se deteriora, e apenas não se desfaz em mil pedaços porque não agimos.
É o desafio que lanço. Sim concordo, vamos discutir a crise, vamos sinalizar as saídas para o impasse. Sim, vamos desancar a financeirização da economia e apontar seus malefícios para a civilização. Sim, vamos detonar a troika. Sim, vamos deplorar o conservadorismo dos nossos governos ditos de esquerda no enfrentamento da crise.
Sim, tudo isso.
Mas ousemos um passo a mais. Vamos abrir espaço para debater a revolução, a radicalização de nossas propostas, um avanço para além da quadratura da moldura.
É legítimo! A revolução é legítima! Até quando vamos ler, pensar e decidir segundo os interesses dos dominantes, segundo os interesses da grande mídia, acuados por ela, chantageados por ela, aterrorizados por ela?
Se eles consideram legítimo, de direito fazer desabar sobre os trabalhadores e a classe média o preço da crise, mais legítimo ainda é a reação a essas imposições.
Ruptura, revolução, subversão das instituições que apenas servem para apertar ainda mais os grilhões da dominação.
O resto, bem o resto é diversão.